_EDITORIA + CURADORIA + PRODUÇÃO
exposição + tertúlias + conferência + publicação FAUP Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto | 2017 PROCESSOS DE CRIATIVIDADE: sujeito - disciplina - circunstância O projecto da DÉDALO 2017 pretende promover uma discussão sobre processos de criatividade, com enfoque particular mas não exclusivo na condição artística da arquitectura. Perante a pluralidade de processos que reconhecemos como criativos, e de modo a estruturar a abordagem, propõe-se como ponto de partida uma escala de reflexão formada por três eixos: sujeito - disciplina - circunstância. Tertúlia Sujeito Criativo com: Vera Santos e Pedro Fernandes Tertúlia Ensino para a Criatividade com: António Neves, Joaquim Moreno e José Capela Conferência Surrationalism: Chris Marker Dormitories in Paris por Éric Lapierre Projecto convidado para a Round Table on Independent Publishing about the City, no âmbito da TICYUrb'18 - Third International Conference of Young Urban Researchers. |
_ARTIGO
TENTATIVA E ERRO
Orlando Gilberto-Castro
Ensina-nos a sociedade a não mostrar fragilidades. A fazer cara forte mesmo quando em dificuldade. Ninguém tem as respostas todas, mas admitir que se tem dúvidas, não ter certezas absolutas, parece-nos sempre sinal de fraqueza. Fomos educados assim.
Não falhar apresenta-se-nos quase como um instinto: em caso de dúvida ficamos calados e vamos desenvolvendo estratégias para não nos comprometermos demasiado com uma resposta, caso não consigamos fugir à pergunta.
Esta postura inconsciente cria uma espécie de insegurança latente, um estado em que preferimos omitir-nos do que correr o risco de não dar a resposta certa, de sermos mal interpretados ou de, simplesmente, dizermos o que se poderá revelar um enorme disparate, mesmo que seja aquilo em que acreditamos naquele momento. Quando entramos para a escola, isto não parece demasiado problemático: reparamos que até podíamos ter posto o dedo no ar, que até sabíamos a resposta correcta, mas não vem grande mal ao mundo que não o tenhamos feito. Noutras fases da vida, quando já não há respostas directas e unívocas a cada questão, este ausentar-se de participar pode já ter outro tipo de implicação. Apenas quando confrontadas com outras posições, apenas quando postas à prova, podem as nossas ideias comprovar o seu valor e a sua pertinência. Quando crescemos, temos de testar para saber.
Nunca num âmbito fechado no nosso próprio umbigo, a um nível mais íntimo como a um nível mais colectivo, poderemos nós aferir o valor próprio daquilo que pensamos, da forma como vemos o mundo. Sem esta triangulação eu – coisa – tu, não há forma de sabermos se a coisa vale por si ou se vale apenas para nós. Ser capaz de se levantar e dizer, perante seja quem for, exactamente aquilo que se pensa – com a confiança e com a humildade que isso exige –, não sabendo de antemão que reacção antecipar, é um acto de coragem sob uma aparência de trivialidade. Partilhar as nossas coordenadas, mostrar a nossa posição no mundo. Uma banalidade, sem dúvida, mas um poderoso gesto de humanidade.
Esta pressão de acertar, esta exigência de certezas, promove a não-participação. E escolher não participar – ou não participar, mesmo que não se trate de uma escolha – é castrador: ao não ser confrontado com a possibilidade de estar errado, os meus valores tendem a manter-se inabalados. E um valor que não treme é um valor morto.[1] É-me, pois, negada a possibilidade de questionamento e eventual destruição das minhas próprias convicções. É-me negada – porque eu deixo, ainda por cima – a possibilidade de, por tentativa e erro, me ir aproximando de uma concepção mais justa de mim e dos outros, de ir percebendo o que há-que manter e o que há-que deixar cair. Estamos demasiado confortáveis com as nossas convicções e o hábito é uma força poderosa. Mas não se pode exigir a ninguém que, de repente, perceba não acreditar realmente no que acredita. Portanto aceitamos que somos o que somos e, em vez de dar o peito às balas, tornamo-nos mestres na defesa das nossas ideias. Se acreditamos nelas ou não, ninguém precisa de saber. Nem nós próprios.
Aquilo que temos para dar – que, no fundo, é consequência directa daquilo que temos para ser – é, portanto, tão mais prolífico quanto menos condicionada for a nossa auto-autorização para fazer propostas. Aceitando que nem todas as nossas ideias serão pertinentes, aceitando que não serão todas igualmente eficazes, é da disponibilidade para esse risco que surgem coisas novas. Seguir um caminho que não está cartografado – porque ainda ninguém o trilhou –, avançar numa estrutura de pensamento sem provas dadas – porque apenas existe na medida em que avançamos com ela – resulta muitas vezes, é inevitável, em absolutamente nada. No entanto, esses caminhos, mesmo os que não levam a lado nenhum, exercitam a capacidade de acção, estimulam o espírito crítico e normalizam a relação com o fracasso. Andar sozinho no escuro mete medo: mas ou avançamos à procura do interruptor, ou aceitamos viver para sempre no mesmo quarto que já sabemos de cor. E tudo certo com esse quarto, não é uma questão de julgamento. Mas quando se procura, de alguma forma, a algum nível, uma aproximação ao gesto criativo – seja isso o que for – não me parece, a mim, o terreno mais fértil. A possibilidade de irmos com os dentes ao chão – que é como quem diz, a possibilidade de erro – mantém-nos acordados, atentos, críticos.
Nesse pântano da arte-criação-invenção-inovação-empreendedorismo, integrar as dificuldades, as inseguranças, a instabilidade do risco parece-me, ao mesmo tempo, produtivo para o processo criador, e relacionável, aproximador – porque humano – do outro que eventualmente irá receber a proposta. A presunção de superioridade do criador relativamente ao objecto criado e ao receptor não acontece e a responsabilidade de ser “bom” – a pressão de saber, de que falava – é relativizada. Propondo-nos criar algo, neste contexto estamos mais livres e disponíveis.
Damo-nos mais permissão.
Criar tem, da forma como vejo, sempre algo de subversivo, no sentido em que fazer existir algo que não existe é necessariamente questionar o que existe como existe; é dizer que o que existe não chega, que queremos mais; mesmo se não sabemos o quê, estamos dispostos a ir à procura. E a procura é-me sempre tão mais eficaz quanto menos tenha de produzir resultados objectivos, mensuráveis. Quanto menos tenha de produzir resultados vendáveis. Permitirmo-nos fazer, fazer sem saber à partida o resultado, fazer aceitando o que não se pode controlar, fazer mesmo se sem justificação consciente – permitirmo-nos ser naquilo fazemos – é um acto de honestidade. E fazer um trabalho honesto é, necessariamente – digo eu –, um acto de generosidade. Mesmo que o resultado esteja longe do pretendido, mesmo que esteja longe de tudo o que prometeu: é-me mais positivo, a todos os níveis, um fracasso honesto, fruto de um trabalho em que se esteve inteiro, do que um pretenso triunfo, que só o é na medida em que teve esse como único objectivo. Triunfar não deve, em nenhuma circunstância, ser o motor de um processo criativo.
“São estímulos, o contacto com outros corpos, a instabilidade. Uma instabilidade produtiva, no sentido em que acabas por estar sempre numa situação de fragilidade. E a fragilidade exalta a criação.”[2]
[1] Foi o Bachelard que disse, na página 243 d’A Poética do Espaço, e eu concordo.
[2] Didier Fiúza Faustino, citado pelo Pedro Baía na Dédalo Displace
TENTATIVA E ERRO
Orlando Gilberto-Castro
Ensina-nos a sociedade a não mostrar fragilidades. A fazer cara forte mesmo quando em dificuldade. Ninguém tem as respostas todas, mas admitir que se tem dúvidas, não ter certezas absolutas, parece-nos sempre sinal de fraqueza. Fomos educados assim.
Não falhar apresenta-se-nos quase como um instinto: em caso de dúvida ficamos calados e vamos desenvolvendo estratégias para não nos comprometermos demasiado com uma resposta, caso não consigamos fugir à pergunta.
Esta postura inconsciente cria uma espécie de insegurança latente, um estado em que preferimos omitir-nos do que correr o risco de não dar a resposta certa, de sermos mal interpretados ou de, simplesmente, dizermos o que se poderá revelar um enorme disparate, mesmo que seja aquilo em que acreditamos naquele momento. Quando entramos para a escola, isto não parece demasiado problemático: reparamos que até podíamos ter posto o dedo no ar, que até sabíamos a resposta correcta, mas não vem grande mal ao mundo que não o tenhamos feito. Noutras fases da vida, quando já não há respostas directas e unívocas a cada questão, este ausentar-se de participar pode já ter outro tipo de implicação. Apenas quando confrontadas com outras posições, apenas quando postas à prova, podem as nossas ideias comprovar o seu valor e a sua pertinência. Quando crescemos, temos de testar para saber.
Nunca num âmbito fechado no nosso próprio umbigo, a um nível mais íntimo como a um nível mais colectivo, poderemos nós aferir o valor próprio daquilo que pensamos, da forma como vemos o mundo. Sem esta triangulação eu – coisa – tu, não há forma de sabermos se a coisa vale por si ou se vale apenas para nós. Ser capaz de se levantar e dizer, perante seja quem for, exactamente aquilo que se pensa – com a confiança e com a humildade que isso exige –, não sabendo de antemão que reacção antecipar, é um acto de coragem sob uma aparência de trivialidade. Partilhar as nossas coordenadas, mostrar a nossa posição no mundo. Uma banalidade, sem dúvida, mas um poderoso gesto de humanidade.
Esta pressão de acertar, esta exigência de certezas, promove a não-participação. E escolher não participar – ou não participar, mesmo que não se trate de uma escolha – é castrador: ao não ser confrontado com a possibilidade de estar errado, os meus valores tendem a manter-se inabalados. E um valor que não treme é um valor morto.[1] É-me, pois, negada a possibilidade de questionamento e eventual destruição das minhas próprias convicções. É-me negada – porque eu deixo, ainda por cima – a possibilidade de, por tentativa e erro, me ir aproximando de uma concepção mais justa de mim e dos outros, de ir percebendo o que há-que manter e o que há-que deixar cair. Estamos demasiado confortáveis com as nossas convicções e o hábito é uma força poderosa. Mas não se pode exigir a ninguém que, de repente, perceba não acreditar realmente no que acredita. Portanto aceitamos que somos o que somos e, em vez de dar o peito às balas, tornamo-nos mestres na defesa das nossas ideias. Se acreditamos nelas ou não, ninguém precisa de saber. Nem nós próprios.
Aquilo que temos para dar – que, no fundo, é consequência directa daquilo que temos para ser – é, portanto, tão mais prolífico quanto menos condicionada for a nossa auto-autorização para fazer propostas. Aceitando que nem todas as nossas ideias serão pertinentes, aceitando que não serão todas igualmente eficazes, é da disponibilidade para esse risco que surgem coisas novas. Seguir um caminho que não está cartografado – porque ainda ninguém o trilhou –, avançar numa estrutura de pensamento sem provas dadas – porque apenas existe na medida em que avançamos com ela – resulta muitas vezes, é inevitável, em absolutamente nada. No entanto, esses caminhos, mesmo os que não levam a lado nenhum, exercitam a capacidade de acção, estimulam o espírito crítico e normalizam a relação com o fracasso. Andar sozinho no escuro mete medo: mas ou avançamos à procura do interruptor, ou aceitamos viver para sempre no mesmo quarto que já sabemos de cor. E tudo certo com esse quarto, não é uma questão de julgamento. Mas quando se procura, de alguma forma, a algum nível, uma aproximação ao gesto criativo – seja isso o que for – não me parece, a mim, o terreno mais fértil. A possibilidade de irmos com os dentes ao chão – que é como quem diz, a possibilidade de erro – mantém-nos acordados, atentos, críticos.
Nesse pântano da arte-criação-invenção-inovação-empreendedorismo, integrar as dificuldades, as inseguranças, a instabilidade do risco parece-me, ao mesmo tempo, produtivo para o processo criador, e relacionável, aproximador – porque humano – do outro que eventualmente irá receber a proposta. A presunção de superioridade do criador relativamente ao objecto criado e ao receptor não acontece e a responsabilidade de ser “bom” – a pressão de saber, de que falava – é relativizada. Propondo-nos criar algo, neste contexto estamos mais livres e disponíveis.
Damo-nos mais permissão.
Criar tem, da forma como vejo, sempre algo de subversivo, no sentido em que fazer existir algo que não existe é necessariamente questionar o que existe como existe; é dizer que o que existe não chega, que queremos mais; mesmo se não sabemos o quê, estamos dispostos a ir à procura. E a procura é-me sempre tão mais eficaz quanto menos tenha de produzir resultados objectivos, mensuráveis. Quanto menos tenha de produzir resultados vendáveis. Permitirmo-nos fazer, fazer sem saber à partida o resultado, fazer aceitando o que não se pode controlar, fazer mesmo se sem justificação consciente – permitirmo-nos ser naquilo fazemos – é um acto de honestidade. E fazer um trabalho honesto é, necessariamente – digo eu –, um acto de generosidade. Mesmo que o resultado esteja longe do pretendido, mesmo que esteja longe de tudo o que prometeu: é-me mais positivo, a todos os níveis, um fracasso honesto, fruto de um trabalho em que se esteve inteiro, do que um pretenso triunfo, que só o é na medida em que teve esse como único objectivo. Triunfar não deve, em nenhuma circunstância, ser o motor de um processo criativo.
“São estímulos, o contacto com outros corpos, a instabilidade. Uma instabilidade produtiva, no sentido em que acabas por estar sempre numa situação de fragilidade. E a fragilidade exalta a criação.”[2]
[1] Foi o Bachelard que disse, na página 243 d’A Poética do Espaço, e eu concordo.
[2] Didier Fiúza Faustino, citado pelo Pedro Baía na Dédalo Displace